Transtorno
de Identidade de Gênero ou
Disforia
de Gênero na Perspectiva Cristã (1)
(Texto
produzido pela Commission on Theology and Church Ralations (CTCR) da Lutheran
Church Missouri Synod (LCMS), recomendado pela Comissão de Teologia e Relações
Eclesiais (CTRE) da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) como orientação
aos pastores e congregações. A tradução foi feita pela CTRE, com permissão da LCMS, conforme mensagem de John
Sias, Secretário da LCMS, em 29/11/2017).
O
termo gênero tornou-se uma questão de
incerteza. Em vez de homem ou mulher, muitos veem o gênero como um assunto
relativo, ou mesmo um continuum. Consideram
que gênero ou a identidade sexual é mais uma questão de descoberta pessoal do
que uma realidade recebida na concepção (2). Refletindo essa perspectiva
teórica, atenção crescente também é dada aos indivíduos que são pessoalmente inseguros sobre seu próprio
gênero ou identidade sexual – em particular, indivíduos "transexuais"
ou "transgêneros" (3), bem como aqueles que se identificam como
"bissexuais" ou "questionam" seu gênero e estão no processo
de determinar o que eles percebem ser sua verdadeira identidade de gênero (4).
Nos
últimos anos, a Comissão de Teologia e Relações Eclesiais foi questionada especificamente
sobre o tema de indivíduos transexuais ou transgêneros. As perguntas vieram de
indivíduos com questões pessoais sobre identidade sexual, incluindo pessoas que
estão incertas se são "verdadeiramente" homens ou mulheres, outras
que se vestem regularmente e apresentam a si mesmos como um membro do sexo
oposto, e ainda outros que estão participando em procedimentos hormonais ou
cirúrgicos para mudar sua identificação sexual de masculino para feminino ou de
feminino para masculino. Além das preocupações de indivíduos que questionam sua
identidade sexual, obreiros da igreja pediram orientação no cuidado pastoral
para indivíduos que lutam com questões de identidade de gênero.
As
páginas seguintes consideram, em primeiro lugar, algumas das perspectivas
psicoterapêuticas atuais da Associação Americana de Psiquiatria - AAP. Essas
perspectivas são importantes, mas as igrejas cristãs procuram uma compreensão
teológica fundamentada na autoridade superior da revelação de Deus nas
Escrituras. Assim, o restante do relatório fornece uma reflexão teológica sobre
o tema da identidade sexual e sugestões para o cuidado pastoral.
Considerações Psicoterapêuticas
O
Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais, 4ª Edição (DSM-IV), da Associação Americana de
Psiquiatria (AAP), 1994, listou quatro critérios necessários para que uma
pessoa seja diagnosticada com transtorno
de identidade de gênero (isto é, como um transexual ou indivíduo transgênero):
· Identificação
de gênero transversal (cross-gender) forte e persistente;
· Desconforto
persistente sobre o sexo atribuído ou sensação de inadequação no papel de
gênero desse sexo;
· O
indivíduo não tem uma condição concorrente
de intersexo físico – [hermafroditismo (5)];
· Aflição
ou deficiência clinicamente significativa em áreas sociais, ocupacionais ou
outras áreas importantes de funcionamento (6).
Em
anos recentes, esses critérios e a classificação da AAP de 1994 da condição
como uma "desordem" têm promovido controvérsia dentro da comunidade
psicoterapêutica, juntamente com um debate apaixonado. A principal preocupação
que muitos tiveram com o DSM-IV foi a suposição de que identificar-se com um
gênero diferente do designado no nascimento é uma "desordem". Pensa-se
que o rótulo "desordem" implica em um julgamento de valor. Por
exemplo, o médico que presidiu o comitê de transtorno de identidade de gênero
da AAP tem sido criticado por muitos porque ele defende a terapia cognitivo comportamental
para a desordem em crianças (embora ele não defenda tal tratamento para
adultos). (7)
Como resultado
do debate, a edição mais recente do Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª Edição - DSM-5 (8),
lançado em maio de 2013, descontinuou o termo "transtorno de identidade de
gênero" em favor de "disforia de gênero" (9). O DSM-5 distingue entre
disforia de gênero em crianças e adultos. Ele define as pessoas "transgêneras"
como aquelas "que transitória ou persistentemente se identificam com um gênero
diferente do seu gênero de nascimento" e as pessoas
"transexuais" como aquelas que ou procuram passar ou já passaram por
"uma transição social de homem para mulher ou de mulher para homem",
quer isso envolva ou não tratamentos hormonais ou cirúrgicos (10). O DSM-5
continua a manter uma distinção entre disforia sexual e uma condição
intersexual (em que um indivíduo tem traços sexuais ambíguos, sejam físicos ou
genéticos). "No geral, as evidências atuais são insuficientes para rotular
a disforia de gênero sem uma desordem de desenvolvimento sexual como uma forma
de intersexualidade limitada ao sistema nervoso central" (11).
A
disforia de gênero em crianças e adultos é supostamente mais prevalente em
homens do que em mulheres. Para os adultos identificados como do sexo masculino
ao nascimento, a incidência relatada no DSM-5 está entre 0,005% a 0,014% (5-14
casos em cada 100.000 homens). Para os adultos identificados como mulheres no
nascimento, a taxa é de 0.002-0.003% (2-3 casos em cada 100.000 mulheres). Não
há dados de prevalência global para a disforia de gênero em crianças, mas a
proporção de muitos estudos internacionais sugere novamente uma maior taxa de
ocorrência em meninos em comparação com meninas (entre 2 e 4,5 vezes frequência
maior para meninos em relação às meninas). Em uma nota final sobre a
prevalência, entretanto, o DSM-5 indica que o Japão e a Polônia relatam mais
disforia sexual em mulheres do que em homens (12). (Não há mais informações
sobre nenhum dos dados e o DSM-5 não indica as fontes da pesquisa ou suas
populações amostrais).
Em
um panfleto on-line lançado antes do
DSM-5, a disforia de gênero é descrita da seguinte forma:
Para
que uma pessoa seja diagnosticada com disforia de gênero, deve haver uma
diferença marcante entre o sexo expresso/vivenciado do indivíduo e o sexo que
outros lhe atribuiriam, e deve continuar por pelo menos seis meses. Nas
crianças, o desejo de ser do outro gênero deve estar presente e verbalizado.
Esta condição provoca desconforto clinicamente significativo ou disfunção nas
áreas social, ocupacional ou em outras áreas importantes de funcionamento.
A
disforia de gênero se manifesta de várias maneiras, incluindo fortes desejos de
ser tratado como o outro gênero ou para se livrar de suas características
sexuais, ou uma forte convicção de que se tem sentimentos e reações típicas do
outro gênero (13).
O próprio DSM-5
afirma: "Disforia de gênero refere-se
à angústia que pode acompanhar a incongruência entre o gênero vivenciado ou
expresso por alguém e o gênero que lhe é atribuído". Além disso, indica
que "o termo atual é mais descritivo do que o anterior DSM-IV e enfatiza a
disforia como problema clínico, e não a identidade per se" (14). Ao tomar esta posição, a AAP está reconhecendo
tanto o debate acima mencionado quanto a complexidade da pesquisa que tem sido
conduzida nessa área. Enquanto uma condição intersexual (ver abaixo) é bastante
distinta e claramente envolve critérios biológicos e genéticos, as causas da
angústia individual sobre o sexo aparente de alguém - o seu "sexo
natal" (15) - são altamente complexas. Não há nenhuma causa fisiológica ou
genética segura para tal disforia.
A
mudança na terminologia do DSM-IV para o DSM-5 é significativa porque indica
relutância em identificar a confusão que um indivíduo pode sentir sobre se ele
ou ela é masculino ou feminino, apesar do seu sexo natal, como um problema
clínico. Ao invés de um transtorno de identidade, o DSM-5 só reconhece a
angústia que o indivíduo sente como um problema tratável. Isso sugere que o
debate com suas consequentes mudanças conceituais e terminológicas ocorreu em
grande parte porque um julgamento de valor é percebido como sendo o cerne da
noção de que a identificação de gênero transversal (cross-gender) em si é uma
"desordem" e, portanto, prejudicial ou negativa.
Ver
a identidade sexual a partir de uma perspectiva ordenada ou desordenada implica
em um juízo moral, com "bom" versus "mau" implícito. Essa
reflexão moral tem sido progressivamente excluída dos campos da psicologia e da
psiquiatria nas últimas décadas. A eliminação da homossexualidade da lista de
transtornos psiquiátricos em 15 de dezembro de 1973 é um exemplo relevante.
Essa eliminação baseava-se principalmente na convicção de que era um julgamento
de valor moral declarar a homossexualidade um transtorno psiquiátrico que devia
ser tratado.
O
contínuo debate sobre a conduta homossexual nos Estados Unidos é, em grande
medida, um debate entre uma compreensão bíblica e tradicionalmente cristã da
qualidade moral do comportamento homossexual e do entendimento, adotado por uma
porcentagem crescente daqueles na comunidade psiquiátrica desde 1973, que a
homossexualidade é uma condição natural ou uma alternativa válida de estilo de
vida. A questão subjacente é se há espaço para o julgamento moral na
determinação do comportamento humano que requer cuidados psiquiátricos ou
terapêuticos psicológicos. A trajetória do pensamento passado e os julgamentos
atuais do DSM indicam uma perspectiva similar sobre questões de identidade de
gênero, a saber, que essa disforia não deve ser vista de nenhuma maneira que
envolva julgamento moral. A AAP, portanto, aborda essa questão de um ponto de
vista significativamente diferente do ponto de vista da teologia cristã.
Reflexão Moral Cristã sobre
Identidade de Gênero
A reflexão
teológica e moral cristã sobre questões de identidade de gênero deve levar em
conta a trajetória indicada acima e sua base na decisão de 1973 da AAP. Uma
suposição subjacente daqueles que pressionam por mudanças na compreensão da
igreja do comportamento homossexual tem sido que a forma corporal de alguém não
deve ser um fator determinante no comportamento moral. Em outras palavras,
simplesmente porque alguém é fisicamente masculino, ele não deveria ter que
aceitar que a expressão sexual natural e agradável a Deus apropriada para ele
deve ser para mulheres. E, se alguém é fisicamente feminina, ela não deve se
sentir moralmente obrigada a restringir quaisquer desejos sexuais exclusivamente
para homens. Da mesma forma, quem tem desejo sexual tanto para homens quanto
para mulheres, não deve tentar negar tais desejos ou sentir-se compelido a
restringir seu contato sexual apenas ao sexo oposto. E, por último, só porque
alguém tem genitália masculina, essa pessoa não deve ser encorajada a procurar
tratamento para o fato de que se sente mais como uma mulher.
Toda
a tradição cristã e a maioria das igrejas cristãs de hoje se opuseram a tais
mudanças na perspectiva. A base para essa oposição é justamente porque nossa forma
corporal é entendida como um aspecto de nossa criação por Deus e, portanto,
instrutiva em relação ao comportamento que é bom e agradável a Ele. A forma
corporal humana indica de modo simples e eloquente a intenção de Deus para a
atividade sexual - que o homem e a mulher, ao se tornarem "uma só
carne", possam acabar com a solidão na unidade vitalícia de um com o outro
e, segundo a bênção de Deus, na procriação de crianças (Gn 1.26- 28, Gn 2:18-24). O desejo e
atividade homossexuais ou bissexuais são, portanto, vistos como aberrantes (ver
Gn 19.4-11, Lv 18.22, 20.13, Rm 1.24-27, 1Co 6.9 e 1Tm 1.10) porque isso contradiz
o significado e a finalidade de sua forma corporal como homem ou mulher.
Esta visão
bíblica não é irrealista sobre a natureza humana em um mundo caído em pecado. É
verdade que um resultado do pecado é que desejos e comportamento se tornam
desordenados. Os esposos e esposas inevitavelmente sentem (e também frequentemente
concretizam) desejo sexual por homens e mulheres que não sejam seus cônjuges.
Em outros casos, homens e mulheres sentem (e frequentemente realizam) o desejo
por indivíduos do mesmo sexo.
A mesma linha de pensamento se
aplicaria a alguém que em sua forma corporal é um homem, mas sente persistente
desconforto com sua masculinidade, ou para uma pessoa com um corpo feminino que
acredita que ela é homem. A partir do ponto de vista de nossos corpos – que é o
único meio objetivo de determinar quem é homem ou mulher – temos uma identidade
dada por Deus que é ou masculina ou feminina. Uma pessoa é um homem ou uma
mulher, porque é isso que o corpo dado por Deus indica (16).
A teologia
cristã sempre procurou distinguir desejos e sentimentos de comportamento. A
ganância, a raiva, o ciúme, o ressentimento, a arrogância, a depressão e as
muitas formas que a luxúria pode tomar são apenas alguns exemplos de
sentimentos ou desejos que cada ser humano experimenta em vários graus e em
vários momentos. Tais desejos são parte da própria natureza humana caída em
pecado (por exemplo, Gl 5.17 ou 1Jo 2.16), mas devem ser combatidos e
restringidos, em vez de receberem livre curso (Rm 13.14). A tradição teológica
cristã procurou, portanto, sempre distinguir entre desejos e atuação à base dos
desejos, e entre pecados comportamentais específicos e o pecador. Reconhece que,
em nossa humanidade pecadora, o comportamento pode ser disciplinado até certo
ponto, enquanto os sentimentos internos estão muito menos sujeitos ao controle
humano.
O cristianismo
compreende a homossexualidade, a bissexualidade ou a identidade e o desejo
transgênero dentro de tal estrutura moral geral. Ele procura seguir a lei
natural (a verdade objetiva de nossos corpos) e a verdade revelada das Sagradas
Escrituras, mesmo se a verdade que essas fontes transmitem conflita com
opiniões societárias ou profissionais, como a da psicologia ou da psiquiatria.
Uma resposta a
essa reflexão é que, embora exista uma direção bíblica que proíba claramente a
atividade homossexual, não há referência explícita das Escrituras aos
indivíduos transgêneros. Existem apenas referências que sugerem implicações
para o indivíduo que sente desconforto com sua identidade como homem ou mulher
(17).
Jesus, no
entanto, fundamenta a moralidade sexual não apenas na verdade revelada, mas
também em nossa natureza criada (ver Mt 19.1-9). Quando ele condena o divórcio,
ele o faz porque, desde o início, "o Criador" (RA/NIV, "aquele
que os criou" NAS, ESV, NRSV) nos fez homem e mulher (Mt 19.4). Jesus
aponta para a nossa criação como homem e mulher e, portanto, endossa a
conclusão de que "o homem deixará seu pai e sua mãe, se unirá à sua
esposa, e os dois se tornarão uma só carne", citando Gênesis 2.24. Como
uma só carne, o homem e a mulher foram unidos por Deus e não deveriam
separar-se.
Paulo fala
dentro do mesmo contexto de homem e mulher e usa a mesma passagem fundamental
do Gênesis em seu ensinamento sobre o casamento (Ef 5.22-33). E enquanto ele, além
disso, discute a moralidade sexual na vida conjugal e solteira (1Co 6.12-7.40),
ele faz isso de dentro de uma perspectiva que reconhece a nossa forma corporal
criada como homem e mulher ("glorificai a Deus no vosso corpo," 1Co 6.20),
a expectativa de autocontrole sexual, seja como casado ou solteiro (1Co 6.18; 7.5,9),
o chamado a viver a vida que nos foi dada (vocação, 1Co 7.17,24), e a
prioridade de servir a Deus em nossas vidas diárias (1Co 7.32).
O raciocínio da
Escritura sobre nossa natureza sexual é, portanto, indiscutível. Além das passagens anteriores, a discussão de
Paulo sobre a homossexualidade em Romanos 1 é importante. Ele considera os atos
homossexuais no contexto de um traço particular do pecado humano: a supressão
da verdade (Rm 1.18). Ele dá dois exemplos de supressão da verdade. A primeira
é a nossa recusa em reconhecer o poder e a natureza divina, que só eles
poderiam fazer aparecer o mundo criado, o que resulta em seres humanos adorando
criaturas em vez do Criador (Rm 1.19-23, também v. 25). O segundo exemplo de
Paulo resulta do primeiro: porque adoramos a criação e não o Criador, também
somos dados a desonrar nossos corpos em vez de buscar a vontade do Criador para
seu uso apropriado. Isto, diz Paulo, é a razão pela qual a humanidade está até
disposta a ignorar a intenção óbvia de nossa criação como homem e mulher e
trocar "relações naturais por aquelas que são contrárias à natureza"
à medida que as mulheres se envolvem em relações sexuais com outras mulheres e
homens em relações sexuais com outros homens (Rm 1.24-27). A compreensão de
Paulo sobre a imoralidade da atividade homossexual está fundamentada em nossa
natureza criada como seres sexuais, nossa forma corporal como homem ou mulher,
e não é entendida como uma regra moral arbitrária revelada por Deus.
Além disso,
dentro da tradição teológica luterana, pode-se notar a relevância da explicação
do primeiro artigo do Credo por Martinho Lutero. Tendo confessado: "Creio
em Deus, o Pai todo-poderoso, CRIADOR do céu e da terra", a resposta de
Lutero à pergunta "Que isso significa?" é diretamente aplicável a
esta discussão: "Creio que Deus me criou a mim e a todas as criaturas; e me
deu corpo e alma, olhos, ouvidos e todos
os membros ... "(18).
Declarar fé na
obra da criação de Deus em nossas vidas é confessar que nossos corpos, com
todas as suas partes – incluindo nossos órgãos sexuais(19) – são dados a nós por
Deus, nosso Pai celestial. As partes do corpo são organizadas e designadas
"cada uma delas, como ele escolheu" (1Co12.18). É a partir desta
consideração da criação do corpo humano com todos os seus membros que o
apóstolo inspirado desenvolve então a imagem rica e bela da igreja como o corpo
de Cristo com todos os seus membros.
Uma abordagem
bíblica da moralidade sexual, portanto, não é simplesmente fundamentada em
passagens específicas da Bíblia. Baseia-se, primeiramente, na verdade de nossa
natureza como seres criados ("lei natural") como é entendida na
Escritura. Deste ponto de vista, a compreensão cristã da identidade sexual
confusa é clara. Porque o cristianismo leva nossos corpos criados a sério, ele é
obrigado a ver como uma desordem da
criação se um homem ou uma mulher sente desconforto com seu corpo e deseja
vestir-se e agir da maneira do sexo oposto ou "mudar" o seu sexo por
meio de hormonios ou cirurgia. Em última análise, tais sentimentos ou ações são
violações infrutíferas de nossa natureza. Tal cirurgia, por exemplo, não mudará
a composição cromossômica do indivíduo, mas apenas mutilará o corpo que Deus
deu.
Excurso: Condição Intersexual como Área de Especial
Preocupação
Uma área
especial de preocupação deve ser discutida neste contexto. Os critérios do
DSM-IV (acima) excluíram explicitamente o diagnóstico de indivíduos com
transtorno de identidade sexual com condição "intersexual", mas essas
pessoas não deveriam ser esquecidas em uma discussão moral e pastoral cristã da
disforia de gênero. Uma condição intersexual em seres humanos pode tomar duas
formas, uma em que as gônadas masculinas e femininas estão presentes no
nascimento e o indivíduo tem ambos os cromossomos masculino (XY) e feminino
(XX). A segunda forma envolve os cromossomos e gônadas de um sexo, mas a
aparência física do sexo oposto (20). Como observado acima, o DSM-5 mantém uma
distinção entre intersexualidade e disforia sexual.
Toda a criação
exibe os resultados do pecado e da morte, embora Deus tenha criado o mundo para
ser um lugar de bondade e vida. Tal é a avaliação sóbria da reflexão cristã
sobre a queda. As desordens congênitas e outros exemplos da natureza em
rebelião contra a humanidade, de que uma condição de intersexual seria um
exemplo, são entendidos de uma perspectiva teológica cristã como exemplos de
criação em "escravidão à corrupção" como resultado da força
corruptora da queda no pecado (Gn 3.16-19, Rm 8.20-23).
Enquanto um
indivíduo com características hermafroditas pode não se encaixar no conceito de
transtorno de identidade de gênero (pelo padrão do DSM-IV) ou o conceito de ser
transgênero, tal pessoa provavelmente conhecerá alguma medida de angústia ou
disforia e pode muito bem procurar orientação e direção pastoral. Aqui a
orientação seria mais dependente do conselho médico do que qualquer posição
particular das Escrituras. A perspectiva cristã fundamental seria encorajar o
tratamento da condição de um modo a permitir a maior abundância possível de
serviço a Cristo e a outros pelo indivíduo. Isto pode muito bem implicar em opções
hormonais ou cirúrgicas que permitam a pessoa a lidar mais eficazmente com a
ambiguidade sexual biológica que está presente.
Cuidado Pastoral para a Confusão de Identidade de
Gênero
Uma resposta
pastoral a indivíduos com qualquer forma de disforia de gênero requer uma base
clara em uma compreensão bíblica da lei natural e nossa criação por Deus como
homem e mulher. Uma compreensão bíblica tanto da gravidade dos efeitos do
pecado como do Evangelho da redenção do pecado pela graça através da fé em
Jesus Cristo também é necessária. Mas tal consciência doutrinária não é a soma
do cuidado pastoral. O ministério da igreja está sempre ancorado na
responsabilidade de proclamar, refletir e decretar o amor de Deus em Cristo
Jesus – seu amor por um mundo caído em pecado – na vida de indivíduos
específicos.
O pastor
entenderá que a pessoa que está lutando com a identidade sexual está de fato
lidando com uma desordem grave, mas também entenderá que a necessidade mais
profunda de tal homem ou mulher – como é para cada pessoa – é saber que ele ou
ela é amada por Deus. O amor e o perdão de Cristo são, neste caso, como sempre
as maiores necessidades de cada um. Tristeza, confusão, frustração, vergonha e
desespero provavelmente estão presentes em qualquer indivíduo lidando com
disforia de gênero ou lutando com perguntas sobre sua identidade como homem ou
mulher. Se tal indivíduo ainda não procurou cuidados psicoterapêuticos, o
pastor deve procurar incentivar e, de qualquer forma, facilitar ao indivíduo a
obtenção de uma terapia competente que não seja hostil à fé cristã (21).
Embora seja
improvável que o pastor seja treinado ou equipado para servir como terapeuta
para essa condição, o valor do cuidado e conselho pastoral não deve ser
minimizado. O pastor tem a oportunidade de oferecer cuidados compassivos
ancorados na Palavra de Deus, que reconhece tanto o poder do pecado como a
aceitação ainda mais forte e graciosa de nosso Senhor Jesus para com a
humanidade, apesar de nossos pecados e fraquezas (Mc 9.17-27; Lc 19.10).
O cuidado
pastoral para essa pessoa lutando com a identidade sexual não começa com
debates sobre o que é ou não é moral. Certamente, o pastor cristão é chamado a
ajudar um indivíduo lutando com a identidade sexual para entender a visão
bíblica da sexualidade humana e para distinguir entre seus sentimentos e ações baseados
nesses sentimentos. A idéia legitimamente persistente de amar o pecador, mesmo
quando desencorajamos pecados específicos, é vital aqui, como é em todas as
situações de cuidado pastoral e orientação moral.
Mais importante
para o cuidado pastoral, no entanto, é o desenvolvimento de genuína amizade
cristã, modelada de acordo com Aquele cuja amizade não conhece fronteiras (Lc 7.34).
O cuidado pastoral amoroso pelo indivíduo procura prover um "lugar
seguro", espiritualmente nutrido, encorajador e acolhedor, para alguém que
pode muito bem ter sofrido de ostracismo, zombaria e animosidade, real ou
percebida. Ele ou ela pode ver a igreja com suspeita ou compartilhar a
suposição comum de que o cristianismo está mais preocupado com julgamentos
morais, batalhas culturais ou vitórias políticas do que com pessoas quebradas e
sofrendo. Ao aceitar o indivíduo em dificuldades, desenvolve-se uma relação de
confiança interpessoal. Dentro dessa relação haverá oportunidades naturais para
fazer Cristo conhecido, para chamar a pessoa a confiar em suas promessas e
amor, e para mostrar que os propósitos e mandamentos de Deus para nossas vidas
são para o nosso bem.
O cuidado
pastoral em tais circunstâncias será desafiador, para dizer o mínimo. As
pessoas que tiveram procedimentos de reatribuição sexual e então chegaram à convicção
de que suas ações foram erros e não foram agradáveis a Deus precisarão de
cuidados especiais e encorajamento (22). Além de incentivar a terapia
competente (como mencionado acima), o trabalho de cuidado pastoral para tais
pessoas buscará tratar suas necessidades espirituais
imediatas, dividindo a Lei e o Evangelho com cuidado e ajudando-os a aceitar o
que pode ser uma realidade permanente e difícil (2Co 12.7-9). Estratégias
específicas para trabalhar em direção a uma vida renovada e agradável a Deus
serão diferentes de caso para caso. Nesses casos, pode ser aconselhável que o
pastor busque permissão para discutir o caso com o terapeuta do indivíduo. Em
todos os momentos, comunicar a importante verdade do amor persistente de Deus
por nós, não importando o que fizemos em e para nossas vidas, é o centro do
cuidado pastoral.
Se o pastor está
cuidando de uma pessoa que está lutando com a identidade sexual, mas rejeita a
orientação da igreja cristã nesta matéria, a tarefa pastoral é semelhante a
muitos outros casos de cuidado pastoral em face do pecado e da queda. A
admoestação e o apelo ao arrependimento são necessários; alguma medida de
disciplina cristã também pode se tornar necessária. É fundamental que pastores
regularmente tenham paciência em ambas as situações, em manter, por um lado, a
verdade da Palavra de Deus, enquanto, por outro lado, buscar pacientemente fornecer
apoio amoroso, em seu esforço de levar ao arrependimento aqueles que não vêem
essa verdade claramente ou estão inclinados a rejeitá-la. O apoio e o conselho
de outros, incluindo clérigos e outros que estão no ministério, é vital para o
pastor. Isso também inclui buscar orientação de cristãos que trabalham nas
profissões de saúde mental.
Para finalizar,
não se deve negligenciar a importante ferramenta pastoral da confissão e da
absolvição individual, mas unida ao conselho pastoral e à genuína amizade
cristã. Nada é mais poderoso na vida de cada pessoa – para todos nós, pessoas
caídas – do que o perdão que é dado pelo sofrimento e morte de nosso Senhor
Jesus. É a maior responsabilidade e privilégio do cuidado pastoral proclamar o
perdão de Cristo, livremente e graciosamente dado, e recebido simplesmente pela
fé nas promessas de nosso Senhor.
Adotado: Sábado, 17 de maio de 2014
Comissão de Teologia e Relações Eclesiais
Igreja Luterana - Sínodo de Missouri
REFERÊNCIAS:
(1)
Como cristãos luteranos, uma consideração da Igreja Luterana—Sínodo de Missouri
sobre este e qualquer tópico se baseia na crença na autoridade plena da Sagrada
Escritura como Palavra infalível de Deus e na convicção de que as Confissões da
Igreja Luterana são uma interpretação verdadeira das Escrituras. A perspectiva
geral deste relatório, no entanto, é aquela que não é simplesmente a da
tradição teológica luterana, mas sim está dentro do amplo consenso (católico)
do ensino cristão tradicional.
(2)
Este é um elemento do que às vezes é referido nos estudos de gênero como o
movimento do "construcionismo social" na teoria psicológica. Como exemplo, ver Rachel Alsop, et al., Theorizing
Gender: An Introduction (Malden, Massachusetts: Blackwell Publishers,
2002).
(3)
Para os propósitos deste documento, são utilizadas as definições de transexual
e transgênero usadas pela Associação Americana de Psiquiatria. Veja o texto
abaixo sobre Considerações Psicoterapêuticas para essas definições (p.2).
(4)
Observe o acrônimo familiar LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros) ao
qual agora é frequentemente adicionado Q para Questionar—LGBTQ. Ambas as siglas
estão regularmente presentes não só em discussões seculares, mas também em
cenários eclesiais. Os lobbies eclesiais LGBT (Q) pressionaram os corpos da
igreja a fazerem mudanças que permitiam a ordenação ao ministério e a bênção
religiosa de uniões entre pessoas do mesmo sexo ou casamentos de pessoas
homossexuais praticantes. Esses lobbies também são defensores de indivíduos
bissexuais e transgêneros e outros que estão questionando sua identidade
sexual.
(5)
Um hermafrodita é uma pessoa que tem ambos os tecidos sexuais masculino e
feminino. É um termo mais antigo para uma condição agora incluída sob o termo
"intersexual" que é definido no corpo desta seção ou descrito pela
frase "desordem de desenvolvimento sexual" (DSD).
(6) DSM-IV (Washington, DC: American Psychiatric
Association, 1994) 537-538.
(7)
Dr. Kenneth Zucker é um sexólogo especializado no cuidado de crianças com
disforia de gênero. Ele favorece a terapia cognitivo comportamental somente em
crianças e desautoriza a terapia reparadora para homossexuais. "Kenneth
Zucker." Wikipedia, a enciclopédia livre.
(acessado em: 29 de outubro
de 2013). A terapia cognitivo comportamental neste contexto pode ser geralmente
definida como um processo terapêutico que tenta ajudar um indivíduo a mudar sua
identidade sexual. Neste caso, a abordagem de Zucker procura ajudar as crianças
que se identificam com o sexo oposto a aceitar o seu próprio sexo como um
menino ou uma menina. Os psiquiatras
acreditam que, após a adolescência, a identidade sexual está definida, e que
não é possível modificá-la através da psicoterapia (EM ITÁLICO, observação
do tradutor).
(8)
As edições do DSM-IV e do antecessor foram identificadas por algarismos romanos
quando abreviadas. O DSM-5 usa o numeral.
(9) DSM-5 (Arlington, Virginia: American Psychiatric
Association, 2013), 451-459. A disforia é definida clinicamente
como "um estado emocional marcado por ansiedade, depressão e
agitação" (Disforia, Dicionário Americano de Stedman's Medical Dictionary,
Houghton Mifflin Company. [Acessado em: 29 de outubro de 2013])
(10)
DSM-5, 451.
(11)
DSM-5, 457. Em outras palavras, há evidências insuficientes para sugerir que a
disforia de gênero tem uma causa biológica, a menos que seja acompanhada de
ambiguidade sexual de natureza física (condição intersexual ou DSD). O DSM-5
cita evidências de que os níveis hormonais para os nascidos homens com disforia
sexual são semelhantes aos da população masculina sem disforia sexual. Os
níveis hormonais para mulheres com disforia sexual indicam um nível de
testosterona ligeiramente maior, mas estatisticamente insignificante, do que o
encontrado na população feminina média.
(12)
DSM-5, 454.
(13)
Ver: http://www.dsm5.org/Documents/Gender%20Dysphoria%20Fact%20Sheet.pdf
(acessado em 29 de outubro de. 2013).
(14) DSM-5, 451; ênfase no original.
(15) O termo "gênero natal" é usado
e definido no DSM-5, 451 como a identidade associada aos indicadores biológicos
que é dado a um indivíduo ao nascer.
(16)
Isso não nega a realidade de
situações em que há ambiguidade sexual que é física ou biológica na natureza. Veja
o excurso sobre Intersexo, abaixo, para uma consideração mais ampla da
ambiguidade sexual biológica.
(17)
Não há, de fato, nenhuma menção explícita,
muito menos discussão prolongada per se,
na Bíblia, de pessoas transexuais ou transgêneras ou pessoas que sofrem
angústia em detrimento de sua forma sexual física. Deuteronômio 22.5 é, no
entanto, uma forte condenação de vestir as vestes do sexo oposto. Alguns
argumentam que tal referência do Velho Testamento não tem nenhuma
aplicabilidade para os cristãos. Uma interpretação cristã mais clássica é que
esse versículo representa um exemplo de "lei moral" com
aplicabilidade contínua. Além disso, a referência de Paulo aos
"efeminados" em 1Coríntios 6.9 (New American Standard e King James
Version, a Nova Versão Internacional traduz o termo como "prostitutas
masculinas") é uma referência provável aos homens que particularmente "cultivam
características femininas” Cf. Robert A. J. Gagnon, A Bíblia e Prática
Homossexual: Textos e Hermenêutica (Nashville: Abingdon Press, 2001), 307-308.
(18) Enfase adicionada. A tradução do Pequeno Catecismo é do Pequeno Catecismo de Lutero com Explicação
(Saint Louis, Concordia Publishing House, 1998, 2005), 15. Cp. Robert Kolb e
Timothy J. Wengert, eds., O Livro da
Concórdia: Confissões da Igreja Evangélica Luterana (Minneapolis: Fortress
Press, 2000), 354, que lê "todos os membros" em vez de membros, ao
traduzir o alemão Glieder. O termo Glied, no entanto, é usado para se
referir a todas as partes do corpo. Além disso, a versão latina do Catecismo
Pequeno diz "omnia membra" para o texto em questão.
(19) Talvez a referência de Paulo às nossas "partes irrepresentáveis"
em 1Coríntios 12.23 vale a pena mencionar. O contexto de 1Coríntios 12 é aquele
no qual ele afirma a riqueza do corpo de Cristo por meio da analogia com o
corpo humano, cujas partes, todas elas, recebem grande consideração e valor.
Isso inclui os "membros" sexuais do corpo que, embora tratados com
modéstia, são, no entanto, dignos de igual consideração aos olhos, ouvidos,
narizes, mãos e pés que estão sempre ativos e visíveis. Veja Gregory J.
Lockwood, 1º Coríntios (São Luís: Concordia Publishing House, 2000), 446-447,
para uma discussão dos membros "inferiores" do corpo.
(21) Seria bom para cada pastor saber de terapeutas que são clinicamente
competentes para fornecer terapia para indivíduos em necessidade. Isso nem sempre
pode ser facilmente realizado. É verdade que há alguns terapeutas que
desconfiam ou até são hostis à fé cristã e ao ensino bíblico, particularmente
no que diz respeito à moralidade sexual. Um pastor pode querer consultar com a
Associação Americana de Conselheiros Cristãos
(http://www.aacc.net/resources/find-a-counselor/).
(22) Houve alguns casos em que os transexuais se envolveram em procedimentos
médicos adicionais para tentar restaurar os traços físicos do seu sexo natal.
No entanto, isso muitas vezes será um objetivo irrealista, senão impossível.